domingo, maio 20, 2007

BABA DE CHUVA

Naquela tarde de março, o tempo instável previa chuvas fortes e o baba ameaçava não começar e Tapia xingava todos os sorridentes diabos e gritava a chegada das águas; os pássaros observavam a rigidez profunda de Tapia e melancólicos sabiam a satisfação de serem pássaros. Só após alguns gritos, o baba enfim começou e os chutes animados arrancavam suspiros de todas as gramas ausentes e a chuva, melodia dos pernas de pau e desespero dos goleiros, açoitava os anjos para todos os infernos, enquanto Beto Biriba perdia mais uma jogada e insistia na marcação. No fundo do gol, Zé de Dona Zefa batia a sua punheta de toda tarde e sombrio chorava espermas para mais uma culpa agonizante e surras nos moleques das flores.
A chuva insistia e era um desafio a mais para os jogadores viajantes de mundos e desconhecedores das certezas de pais e mestres. Nanau, adversário de Tapia, perdia mais um gol e o baba chegava ao seu clímax e algumas brigas beijavam faces rosadas e sadias e os gols eram sucessivamente alegrias e tristezas.
E a chuva continuava a martelar os cansados sorrisos e as conversas e discussões e em um grito desesperado Tapia dava por encerrado a peleja e era o fim, para todos nós, de uma jornada e a felicidade agora descansava nos pés sujos e poéticos dos meninos comedores de sonhos e perdidos nos caminhos de dores futuras.
O baba dos adultos começava e éramos platéia de nossos ídolos e Nanau sabia que ali era a guerra das guerras que estava sendo travada e que o dia escuro reservava o inferno dos anjos, e na mente de Nanau, menino triste e vizinho de fantasmas, o baba agora era uma infelicidade por vir, em um vir a ser anunciando nos ódios dos jogadores, e de suas raivas lacinantes, pois na solidão doentia dos adultos a chuva interligava os homens e cansava a poesia dos zoófitos atentos.
Dia escuro, em tempestade de ausências, chuva, chuva torrencial atormentando os dias obscureciam as almas envelhecidas aos doze anos e fazia a garotada sorrir tristezas agudas e cantar o canto do saber. Nanau acreditava estar no seu melhor dia: o dia chuvoso que desmascarava o dia radiante falso e brilhante dos olhares irritados e esquecidos nas dores covardes das manhãs que nada traduziam e era apenas o funeral das esperanças. Nanau olhava o céu e feliz sentia o vigor da tempestade; ao seu lado, Benel de Merú arriscava um placar e ensaiava uma briga com Nê de Cozim, o clima estava ficando bom. E o aguaceiro insistente intermediava ódios e fabricava encontros nas surdas tentativas de diálogos. Nanau, persistente em sua solidão, respondia passados a todas as indagações e observava o baba e para ele os outros eram caveiras esotéricas que pululavam nas águas passantes e então ele se sabia louco e podia sorrir por entre faces e saber o passado de todas as esperanças e esperar a chuva e o baba como uma ilusão necessária para os insistentes mortos falarem da vida.
A agua cantava sua canção de desprezo e todos corriam pra suas casas e fechavam na cara das poças uma porta de ferro e de indiferença. As surras e brigas agora eram a realidade dos meninos sem sonhos; eles, brancos e pretos, perderam as multicores nas ameaças dos pais e de irmãos maiores.
O choro do céu tornava a baixinha da vitória uma rua de anjos baldios e uma realidade mística encantava toda nudez azul e fazia a infância cantar e chorar e soletrar palavras mágicas que dançavam na rua com meninos de outros mundos que jogavam bola em noites magoadas e embriagadas.
A trovoada parava pensamentos e travava amores e ameaçava tremores. Os adultos espancavam a poesia e rezavam agruras e sofrimentos e de suas horrendas bocas medonhos culpados desfilavam a morte em pedaços agonizantes.
E o mundo de Nanau era um mundo particular e invadido por todos esses seres mágicos e aterrorizantes, e só a noite trazia a calma sombria de uma felicidade única e de um pós - construir certezas na calmaria das correntezas nos lagos futuros.

ronaldo braga
(conto oferecido ao poeta Luciano Fraga, companheiro de varios babas na infância)


Um comentário:

Anônimo disse...

e a memoria ponte nos atrevessa dando descaminhos para uma breve passagem em busca dos tempos.
luciano. muito obrigado.