domingo, dezembro 16, 2012




O ENCONTRO MUDO

Evidentemente, que logo após o ato consumado ela tinha um “puta” desejo de soltar aquela gargalhada... -É fácil ser calhorda, fingido. Preferia manter-se contida. Nada além, bastava-lhe a acolhida formal... Onde o riso cabe, também comporta o choro, a lágrima com igual tenacidade. Às vezes lembro-me do episódio do rio, quando nos atirávamos de corpo e alma naquelas águas escuras - penso que seja isso que a leve às lágrimas, talvez quisesse afundar naquela escuridão, ficar lá pra sempre, entulhar todo seu escárnio. E nesse entrave, de toma lá, dá cá, choro e riso, ela esfregava as mãos, - tudo é troca? Nesse tempo passou a cultivar o hábito de confeccionar máscaras de papel, quase todas masculinas, vermelhas, com um detalhe incrível, nenhuma delas aparecia a boca - ela preferia esconder os dentes, o riso, os abortos amorosos? Fazia os lotes, que correspondiam a certo período lunar, prevalecendo a lua nova, nenhuma com motivos carnavalescos. Preparava o jardim, regava todas as flores e deixava a água escorrer até formar uma poça que lhe servia de espelho para a experimentação. Ela atirava pedras no fundo da poça, - quem não atira pedras? gerando pequenas ondas que assim distorcia a imagem refletida, ela gostava de apreciar aquelas aberrações, suas caricaturas, e aquilo servia como inspiração para outras máscaras. Levava horas naquele processo, era um rito, assim como gostava de andar nua pela casa, seus pais não levavam fé em nada daquilo, não tinha irmãos. Fez isso anos a fio; olhar, gerar a poça, atirar a pedra, ser outro por trás de si mesmo dentro da máscara, andar nua. Após cada sessão, conferia o próprio rosto no espelho da casa e nada notava de estranho, até que num certo final de tarde mumificou-se. Percebeu que a máscara que havia usado não saia do seu rosto estava impregnada como uma impressão digital, uma nova identidade e tudo que ela conseguia enxergar era aquela coisa terrível que ela mesma havia pintado, recortado e parido. Lavou o rosto inúmeras vezes, tentou arrancar com uma tesoura, remover camada sobre camada sem êxito, ela só via aquela cara, mas só ela via aquela cara, as amigas, todos em sua volta diziam que ela estava bem, que nunca o tinham visto com um rosto tão belo e forte, com traços tão marcantes, ela voltava ao espelho para conferir e via tudo diferente, não sabia com agir. Ela era a primeira filha de um pai que queria um filho, o sonhado e desejado, o filho homem, o herdeiro, estes tais desejos de um familismo incurável, determinante,"ninguém sabe que o filho da manhã nasceu". Com o rosto máscara, continuou suas cerimônias, só que agora era máscara sobre máscara, sobre o rosto antigo, com uma pequena mudança, não atirava mais as pedras, a água mantinha-se parada, sem aquelas ondas... O lodo começou a arruinar aquilo que tinha um fundo límpido e cristalino, o espelho passou a ter um fundo escuro, até que ela enxergou o próprio rosto no fundo daquela poça negra, mesmo usando as máscaras. Tirava, colocava as máscaras e só enxergava a própria cara. Todos que a cercavam passaram a achá-la estranha- feia, incrivelmente feia, uma múmia, uma mutação aberrante... Entre eles havia a suspeita de que ela estaria com alguma doença grave-contagiosa? Sua fisionomia esta completamente mudada - muito enrugada, disse um deles. Ela percebeu o pânico que estava causando e o que causava o pânico e assim como eu que já havia morrido inúmeras vezes, renasceu. 


Luciano Fraga

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