terça-feira, abril 22, 2008

Nunca gostei das canções de ninar



Esta semana, exatamente há dois dias, reencontrei um cara que eu não via já há muito e lembrei que na faculdade eu sempre lhe dizia:
- Augusto, você tem nove anos de idade, cara. Quem tem nove anos de idade depois dos quinze já é velho mesmo na juventude, porque nove anos é a idade em que o homem é um zangadinho e pra tudo diz:
-Mamãe, ele tá me abusando!
Agora eu olhava aquele cara se aproximando de mim depois de sair do seu carro e percebia que ele ainda tinha nove anos, apesar daquele sorriso de superioridade que ele trazia como se estive colado em seu rosto. Depois de me olhar por completo, Augusto me disse:
- Cara, você faz coisas como se ainda tivesse vinte anos.
Ele me disse isso sorrindo e seus pequenos lábios se fechavam e se abriam numa velocidade estonteante, o que me agradava.
- Você tá ouvindo!? - Gritou ele, ainda rindo. Tive que deixar de observar seus nervosos e rápidos lábios e olhar diretamente aquele seu rosto gordo.
- Calma, eu estou ouvindo, mas você não compreende uma coisa - E ele sempre se mostrando apressado, se interessa.
- Vai fazer uma análise de minha vida?
- Calma. Você que disse que eu estou defasado, ridículo, fora de época e outras coisas mais. Acho justo você falar, mas eu só vou dizer que você sempre foi velho. Desde os vinte anos você já tinha 60. Então, não podemos nos comparar. Mas, realmente, eu continuo tendo vinte anos, e esse negócio de idade tem muita valia para os sistemas: financeiros, econômicos, industriais e outros equivalentes. Para a vida o que vale é o sujeito tá em forma, ter saúde, elasticidade e força muscular. Enquanto tiver isso, o sujeito pode dizer que tem vinte anos. O resto é pura simulação de gente que gosta de já começar o jogo ganhando.
Ele me olhou de lado, acendeu um cigarro, puxou forte a fumaça e soltou-a com prazer. Eu aproveitei a oportunidade e lhe perguntei:
- O que tá acontecendo, meu amigo? Você parece triste e abatido. Você disse que eu faço coisas e atuo como se tivesse vinte anos. Meu amigo, meu amigo. E você quantos tem, 85? Pois esta é sua real aparência.
Ele puxou do bolso a chave do carro.
- Melhor eu ir embora, você já começou a me ofender.
- Não, não, pode ficar.
Depois de uma breve pausa, continuei:
- Essa sua cara azeda...é felicidade?
Ele olhou bem no fundo dos meus olhos e, agora sem sorrir, gritou.
- Quer saber?! Nem mesmo na faculdade eu gostava de você!
- Eu sempre soube. Onde tá a novidade? Tá apaixonado por mim?
Ele ficou vermelho e, se não continuasse covarde, por certo daria um bom murro em minha cara.
- É por isso que você é pobre!
Ele disse e arrastou o carro quase atropelando uma menina que saía de uma faculdade ali bem perto.
Eu, por um pequeno momento, olhei o carro se afastando a toda velocidade enquanto pensava naquele sujeito que acabara de sair dali zangado comigo. Comigo? Por certo não, ele estava zangado era com ele mesmo.
Adiante, numa rua transversal, algumas garotas apareceram na porta de um colégio e começaram a cantar. Olhei para aqueles rostos bonitos, sensuais e sorridentes e lembrei de muitos colegas da faculdade, e até mesmo do ginásio, e com tristeza constatei que mais da metade já eram velhos desde garotos. Eles acreditaram no que ouviram, nos seus pais e em seus mestres. Eu não, eu nunca acreditei em meus pais de forma incondicional e sempre percebi ali naquela relação uma luta, eu sabia que tinha que haver segredos ou estaria para sempre derrotado. Assim como nunca acreditei na educação. Acreditar era envelhecer, eu nunca acreditei na escola e sempre soube que aquele aprendizado ali do colégio era puramente para viabilizar a produção que só interessava ao sistema e, desde criança, eu sempre tive a certeza de que deveria desaprender tudo ou estaria para sempre perdido. Por isso sempre remei contra a maré.
Esse negócio que diziam e dizem sobre o benefício da educação para o indivíduo e para a vida é pura mentira.
A educação é o processo no qual o sujeito se perde e no lugar dele aparece aquilo que é agradável e lucrativo para o sistema político, social e econômico. Nada mais que isso. Da escola secundária a recordação boa que eu tenho é a do recreio, das brigas e brincadeiras em um limiar quase sempre ultrapassado, fazendo do recreio um momento também violento. Pois os corredores já eram por demais violentos naqueles dourados anos. Ali eu apanhava e batia, nem sempre nas mesmas proporções, porém, era ali que eu aprendia a vida que era vivida na minha realidade e não a fantasia das salas de aulas.
Augusto voltou com a sua cara gorda, deu uma freada com toda brutalidade e bem alto me disse:
- Se prepare cara, eu vou fuder você.
- Fuder comigo Augustinho? Eu com 49 anos e você quer fazer sexo comigo, gordinho?
- Você sabe do que tô falando cara! Eu vou lhe fuder!
Arrancou de novo com violência e velocidade o seu belo carro.
Então, eu percebi a flor à minha frente. Era bonita, era vermelha e era silvestre. Eu cheirei a flor. Cheirei o mundo e cheirei o passado.
E eu pude ver então os pássaros, os rios. E toda a natureza parecia novidade pra mim. Como era bom o mundo. O vermelho da flor penetrava meus olhos e me embebedava calmamente e eu fui compreendendo algumas facetas da minha própria pessoa.
Eu venho da brutalidade dos recreios e não do simulacro das salas de aulas, isso contava muito. Eu sei e sempre soube e, por isso mesmo, vou sorrindo entre os cactos e contando as estrelas, pois meu mundo ainda é o mundo da minha infância. Tenho e sempre terei eternos dois anos e nunca gostei das canções de ninar.



Ronaldo Braga


2 comentários:

Luciano Fraga disse...

Ronaldo,não poderia deixar de emitir uma opinião sobre o tema que considero relevante.Acredito que todo processo de conformismo,auto-crucificação,dependência,acomodação,nasce do ato, da prática das canções de ninar, que nada mais são que aquietação,aceitação, estado de dormência,letargia,lerdeza.Este texto nos conduz profundamente para este auto- questionamento,muito bom.

Anônimo disse...

caro fraga eu
escrevi este texto
justamente por causa da
super-estrutura e da
micro- estrutura da
nossa sociedade. o paradoxo agora é o paradigma de toda a relação do ser humano seja com ele mesmo ou com qualquer outro tipo de existencia.
nós somos o tempo o simulacroo de nós mesmos, de um eu que seja possivel ser perfeito ou como dizia Reich somos limitados pelo nosso recalque, que é visto como carater.
ronaldo braga