QUALQUER TEMPO PERPENDICULAR
O telefone tocou; era um número estranho, vacilei, mas mesmo
assim resolvi atender, era ela... Pensei em dizer que era tarde, imaginei um
“foda-se” com todas as letras, pensei: mais uma das paradas indigestas que só o
que era sexo que virou amor, trás. Que clichê consumista! Isso não muda o
mundo. Eu do lado de cá em total silêncio, - “cê tá me ouvindo, cê tá me
ouvindo?” Era ela, não havia dúvidas. Aquele desespero, aquele humor doentio,
aquela voz despencando do décimo andar, pasteurizada, rançosa, de quem nunca
amou. Quem amou? Quem amou quem? Ela nunca amou ninguém. Era ela. Aquela
fragrância rompia a linha de misericórdia como um tiro e invadia minhas
narinas, meu sangue, minhas veias e trazia as lembranças: seu andar desleixado.
Eu me desdobrava em atenção, embora escutasse suas condolências entre descaso e
firmeza. Ela implorava de forma insuportável que eu a entendesse e repetia e
repetia: “me entenda, me entenda” e eu pensava em dizer não, mas eu dizia sim, -
sim, entendo... Todos os dias... E ela insistia dizendo que havia “ingerido
aquelas coisas por amor, creia”. Eu, não tinha mais nada para oferecer senão um
“sim, sim” pra ela e para aquela coisa morta que ela pedia que eu entendesse e
que só eu sabia que ambas estavam mortas, aquela coisa hemorrágica... Ela insistia
em explicar o que não pedia explicações. Nem a coisa, nem eu.
Aquilo foi me levando à exaustão, era um labirinto, agora
era ela que não compreendia que eu não estava mais ali, havia tempo que eu
estava ausente, literalmente, agora estava ausente fisicamente, pois abandonei
cuidadosamente o aparelho telefônico e fui ao banheiro, ela ficou falando só...
Retornei, escutei: “Cê tá me ouvindo, cê...” A penúltima vez que a encontrei,
ela havia ingerido aquelas coisas... –“Cê tá me ouvindo...” aquilo caindo no
vazio, aquele maldito: - - sim, que eu respondia como um faz de conta, aquela
vontade de sumir. Na realidade não havia mais ninguém do lado de cá da linha,
mas ela insistia, e aquilo se arrastava feito uma serpente anestesiada e eu já
estava pronto para descartá-la, bater o dedo, desligar aquele aparelho, quando
ela saltou com uma afirmativa, num tom de como eu a tomasse como a culpada
daquela ironia:-“ você, apesar de tudo tem uma dívida comigo”, afirmou categoricamente.
Embora eu não estivesse mais a fim de ouvir aquela pasmaceira, eu disse
novamente sim e curiosamente, mesmo depois que ela roubou todo o meu tempo,
perguntei pra mim mesmo, como uma questão exata, o que é que denomina a dor? O
que é mesmo? Respondi em silêncio pra mim mesmo: - qualquer sentimento. Ainda
tomado por aquele ineditismo, àquela surpresa desagradável que me apanhou de calças
curtas, que dívida eu teria com aquela mulher? Esperei, e ela silenciosa do outro lado
aguardava a minha pergunta, aliás, a resposta até hoje me intriga, e eu não
resistir e perguntei: afinal o que lhe devo? Ela sorriu com um sarcasmo filho
da puta:- você tá me devendo pelo menos, quinze minutos de amor... Como uma
bomba me veio a canção do Caetano: “você exasperou...” pensei. O telefone
emudeceu, eu apanhei o gelo, coloquei no copo, escutei “O Death” ao vivo no
máximo volume pelo resto da noite, só não lembro na voz de quem...
Luciano Fraga
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